sábado, 7 de junho de 2008

Martins Pena e a criação da comédia brasileira


O lançamento de Antônio José ou o Poeta e a Inquisição parecia um manifesto para a posteridade – a tomada de consciência de uma missão artística e cultura a cumprir. Meio ano depois, a 4 de outubro de 1838, pela mesma companhia de João Caetano, estreava O Juiz de Paz na Roça, sem alarde publicitário e pretensão histórica. Era a primeira comédia escrita por Martins Pena (1815-1848), de feitio popular e nada ambicioso, costurando com observação satírica um aspecto da realidade brasileira.
Martins Pena escreveu dos 22 aos 33 anos de idade, quando morreu, 20 comédias e seis dramas fundando a comédia de costumes brasileira, o que muitos consideram o verdadeiro teatro nacional, naquilo que ele tem de mais específico e autêntico.
O painel histórico da vida do país, na primeira metade do século XIX, a espantosa atualidade de Martins Pena por ter fixado os costumes e características que têm continuado através do tempo, e retratam as instituições nacionais. Em pleno surto romântico, Martins Pena antecipa alguns dos nossos traços dominantes, não aprofunda caracteres ou situações, mas é um comediógrafo que atinge religião e política, o funcionamento dos três poderes, queixa-se do presente, em face de um passado melhor.
Define o estrangeiro no Brasil, e as reações do brasileiro, em face dele. Mostra a província e a capital, o sertanejo e o metropolitano, em suas diferenças básicas. Profissões indígenas e os tipos humanos inescrupulosos, denunciando inclusive o tráfico ilícito de negros, na sociedade escravocrata brasileira. Não lhe é estranha a galeria dos vícios individuais, como a avareza e a prevaricação, e tem um sabor especial ao satirizar as manias e as modas. Trata da constituição da família, surpreendendo-lhe o mecanismo na análise do casamento, com o eterno conflito das gerações.
As referências aos arquétipos cômicos e à crítica da atualidade leva a uma conceituação de Martins Pena segundo os modelos tradicionais do gênero. Quando o ator João Caetano o denominou de “o Molière brasileiro”, estabeleceu um ponto de partida obrigatório para a crítica. No entanto, seria o caso de afirmar que o dramaturgo brasileiro se saiu melhor quando se distanciou do padrão francês. Seus trabalhos são mais interessantes na medida em que refletem os dados do meio, os costumes que lhe era possível retratar.
A comédia oscila, normalmente, entre dois pólos, o estudo da situação e o de caracteres.
Tem a virtude de diferenciar duas grandes famílias, cujos representantes mais ilustres se chamam Aristófanes e Molière. O gênio grego, impregnado da tradição do comos, importa-se com a realidade de seu tempo – faz comédia política, satírica, pessoal.
A figura de Molière solidificou o gênero na vigorosa linha. Vindo da Comédia Nova, fornece ao dramaturgo francês os modelos de Plauto e Terêncio. Se Aristófanes, nas individualidades reais de Cléon, Eurípides e Sócrates, nas Vespas quis retratar num juiz a mania do julgamento. Já Molière, embora tivesse satirizado as Preciosas ridículas ou o Burguês fidalgo, foi aos arquétipos, com o Tartufo, o Misantropo, o Avarento, Dom Juan. O autor da Lisístrata teve sempre em mira a cidade. O comediógrafo de L’École dês Femmes debruçou-se sobre o homem. Esse lugar-comum da crítica literária nos levaria, assim à vontade de chamar Martins Pena não o Molière, mas o Aristófanes brasileiro, não tivesse ele, conscientemente querido observar a lição do Francês, ou melhor, conciliar as tendências que, por motivos didáticos se exprime de forma autônoma nos dois. De Aristófanes, Martins Pena guarda a sátira mordaz aos temas vivos do presente – a crítica às instituições e seus representantes.
Em Molière, inspira-se para pintar os vários tipos de sua galeria.
A safadeza menor, o mau caráter, o roubo poltrão, a pequenez de tudo – esse é o retrato melancólico feito por Martins Pena da maioria de sua personagens. Essa é a triste imagem refletida em sua comédia.
Ao lado das personagens caracterizadoras do imediatismo da sátira, pulula uma extensa galeria de jovens amorosos, que repetem quase sempre as mesmas situações, até o desfecho, no casamento. À primeira vista, poderia parecer esse o traço romântico da obra do comediógrafo, enquanto as outras figuras, sugeririam a antecipação da literatura realista.
O amor, esteve ausente da tragédia e da comédia Antiga da Grécia. Apenas a Comédia Nova, com Menandro, e seus sucessores romanos Plauto e Terêncio, transferindo sua temática para os problemas ligados à constituição do núcleo familiar, veio surpreender a procura da mulher pelo homem, ainda em plena fase do arroubo adolescente. A grande árvore genealógica dessa comédia, que terá em Molière seu representante mais ilustre, mantém as peripécias que se resolvem no casamento como um de seus motivos básicos, explicando-se pela própria organização da sociedade. Todas as suas comédias concluam com o casamento.
Como regra, nas comédias, após vencer obstáculos transitórios, o par amoroso se une em definitivo.
Deve-se assimilar em Martins Pena, a confiança na inclinação romântica e espontânea, que recusa os interesses financeiros e os arranjos paternos. O amor é de fato para ele o gosto exaltado de dois jovens, dispostos a lutar contra todo para se unirem em matrimônio. A preferência dos pais pelos pretendentes velhos ou ricos é contrariada pela jovem sincera, que inventa pretextos e participa de maquinações do rapaz amado para que o amor verdadeiro triunfe. Geralmente, os pais dispõem-se à conveniência, ao passo que as mães são sensíveis ao rogo das filhas.
Peculiaridade curiosa do caráter feminino é que muitas vezes a trama se encaminha por sua iniciativa. Ou, ao menos, por uma participação que nada tem de mera passividade. As mulheres agem, lutam pela realização de seus objetivos, nunca se reduzindo a um papel conformista. O principio da obediência aos pais não é em geral quebrado, porque seu consentimento para o matrimônio se alcança por meio de ardis, nos quais a cumplicidade da moça é decisiva para o êxito.
Para Martins Pena, o amor é um sentimento essencialmente jovem, confundido com as delícias cheias de apreensão do namoro, e praticamente esgotado nessa fase.
Não poupa Martins Pena, também, as viúvas que se enfeitam com o objetivo de realizar um novo casamento, e os velhos que se dispõem a fazer uma conquista amorosa.
Em relação aos homens, as mulheres maior fidelidade.
Escrevendo para o riso imediato da platéia, sem a procura de efeitos literários mais elaborados.
Martins Pena revelou inteira a sua fisionomia cômica. A preocupação com o flagrante vivo o isentou de um dos maiores defeitos da linguagem teatral, patente na dramaturgia brasileira: a oratória, o rebuscamento das frases, que roubam a espontaneidade ao diálogo. Tudo é simples na comédia de Martins Pena- a situação, o traço dos numerosos tipos, o desenvolvimento da trama, a conversa das personagens.
A intriga escorre, assim, fluida, vibrante, e as peripécias, para chegarem ao desfecho, são maquinadas à vista do espectador, reclamando desde logo sua cumplicidade e simpatia.
Como as comédias se desenvolvem sobretudo em torno de uma situação, Martins Pena sente-se mais a gosto nas peças em um ato, que esgotam em pouco tempo o rendimento do entrecho. Acrescente-se que as comédias eram encenadas muitas vezes como complemento de um espetáculo “sério”, para desanuviar a atmosfera do dramalhão, e os primeiros trabalhos nem era revelada, nos anúncios, a identidade do autor.
Na farsa cultivada por Martins Pena, prevalece o desejo de provocar a gargalhada franca, embora com sacrifício do rigor da trama e da harmonia íntima dos protagonistas. O mecanismo da intriga permite apenas que se esbocem os tipos, já que a vivacidade das situações determina o movimento das personagens, e não são estas que modificam essencialmente, pela força interior, o quadro em que atuam. Os incidentes se sucedem muitas vezes de forma inverossímil, utilizando o autor recursos primários e ingênuos para chegar ao desfecho. As criaturas parecem em circunstâncias ridículas, fora de seu procedimento normal. Aí então os dados básicos para filiação de Martins Pena ao gênero farsesco.
O autor abusa dos esconderijos, de cartas e do erro de identificação das pessoas, por meio do disfarce ou de simples engano dos interlocutores.
Se as comédias, apresentam numerosas virtudes, os dramas não as acompanham nos méritos. Com exceção do Drama sem Título, do qual restam apenas as primeiras cenas, as outras cinco produções dramáticas são de quando o autor atingia os 25 anos de idade e ainda não havia chegado à melhor fase de seu talento cômico, vinda cinco anos depois. Em contraste com as farsas em um ato, escreve dramas até em cinco atos e um prólogo. Apenas Vitiza ou o Nero de Espanha foi representado.
Os cinco dramas completos nada acrescentam ao nome literário de Martins Pena. As comédias subsistem não apenas como documentário, mas valem pela verve, pelo sabor, pelo mecanismo que guardam a eficácia cênica em nossos dias. Quanto aos dramas, supomos que sua montagem, hoje, não representaria outro mérito senão o de mostrar ao público um documento histórico.
Itaminda ou o Guerreiro de Tupã, na tentativa de realizar,antes da moda, um drama indígena, embora, a não ser no amor selvagem e desvairado do protagonista (ainda assim, típico herói romântico),as personagens em nada difiram essencialmente, pela raça, pela religião ou pelo procedimento. Sentem-se em todos os dramas reminiscências Shakespearianas, tanto nas intrigas complexas como na multiplicidade de cenários, mas já barateadas pelos imitadores europeus do século XIX e movidas pela imaginação folhetinesca, que transformou grande parte do Romantismo em dramalhão. Coincidências se sucedem, e enredos rocambolescos se emaranham para mergulhar o todo em atmosfera de fantasia e inverossimilhança. Martins Pena, voltado na comédia para a realidade imediata,observou, na fatura dos dramas, o preconceito antigo, segundo o qual a grandeza deve ser buscada pelo distanciamento dos temas e das personagens, executando o drama indígena, os outros são ou pretendem ser históricos, situando os episódios em tempo e países longínquos.
Fernando ou o Cinto Acusador – D. João de Lira ou o Repto – D. Leonor Teles.
A falta de uma verdadeira linguagem trágica ou dramática reduziu muito o alcance dessas experiências do fundador da comédia brasileira. Seu malogro resume, desde já, a trajetória do nosso teatro na segunda metade do século XIX. Apesar das limitações de toda ordem, a comédia de Martins Pena representa de fato o marco inicial da fixação dos costumes brasileiros, que são explorados por Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, França Júnior e Artur Azevedo, os principais cultores do gênero, numa continuidade de trabalhos que vem até o princípio deste século. Do dramalhão, ao qual não escapou Martins Pena, quase nenhuma peça também fugiu e somente parte da obra de Gonçalves Dias e uma ou outra peça conseguem atingir verdadeira nobreza dramática. Numerosos traços da comédia de Martins Pena reaparecem nos sucessores, conservando o seu eco e as qualidades mais autênticas. Martins Pena leva para o palco a língua do povo, e por isso o brasileiro enxerga nele, com razão, a sua própria imagem.

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