sábado, 7 de junho de 2008

Gonçalves de Magalhães e o encontro da nacionalidade


O papel de Gonçalves de Magalhães no teatro brasileiro foi, sobretudo, o de dar consciência e impulso orientador a uma aspiração íntima do país, quando chefiou o grupo literário que introduzia entre nós o Romantismo. Em Paris, editou a revista Niterói e seu livro Suspiros Poéticos e Saudades, publicado também na capital francesa, permanece o marco de introdução da nova escola em nossa literatura.
Magalhães nasceu em 1811, junto com seu nascimento, nascia um Brasil novo, política e economicamente, com a abertura dos portos ao comércio livre, os novos direitos políticos e o incremento econômico; a criação de bibliotecas, museus, jornais e escolas superiores, e o incentivo da vida artística, dentro da qual o teatro se tornaria de fato uma atividade regular. Chegado a Paris, Magalhães encontrou ambiente diverso do neoclassicismo em que se formara no Brasil. Colheu do romantismo o que lhe parecia mais aproveitável, sem renegar, contudo, o equilíbrio dos padrões clássicos.
Entre nós, não havia uma tradição contra a qual se opor; o passado era marasmo e não presença viva e importuna. Cabia, na verdade, formar algo a partir de nada ou muito pouco. Por isso a obra de Gonçalves de Magalhães se afigura a crítica um elo de transição entre a escola antiga e o Romantismo.
Foi a 13 de março de 1838, a noite histórica do teatro brasileiro, na qual subiu à cena do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, a peça Antonio José ou o Poeta e a inquisição, cujo prefácio traz as seguintes palavras do autor: “Lembrarei somente que esta é, se não me engano, a primeira tragédia escrita por um brasileiro, e única de assunto nacional”. A estréia constituiu-se num êxito, pela união feliz do texto ao desempenho da companhia de João Caetano, dirigindo-se a uma platéia ansiosa por um acontecimento daquele.
O assunto nacional era a vida do dramaturgo Antonio José, que o poeta subtraiu do domínio português. Embora a ação da peça transcorra em Lisboa, onde ele foi queimado, em auto-de-fé, por suposta prática judaizante. Segundo Sábato Magaldi, a falta de informações mais pormenorizadas sobre a vida do Judeu, ou o desejo romântico de moldá-lo segundo o esquema das vítimas de uma injustiça mais poderosa, contra a qual é impotente o homem, fez que Magalhães fantasiasse a trama ao seu inteiro arbítrio.
O verdadeiro motor da ação, marcando-lhe os momentos decisivos, é Frei Gil, que persegue o Judeu sem incorrer em fanatismo religioso, porque o representante da Inquisição está distante de qualquer fé católica. Seu propósito é o de afastar Antonio José da atriz mariana, na esperança de conquistá-la. Como o herói repele a investida do frade contra a bem-amada, a vingança do vilão será perdê-lo nos cárceres inquisitoriais. Frei Gil denuncia o indefeso poeta, levando-o a ser sacrificado vivo na fogueira. O frade certifica-se da presença de Antonio José na casa do Conde de Ericeira, seu protetor, por intermédio de uma carta que marcava um livro. Mariana morre instantaneamente, quando os Familiares do Santo Ofício prendem Antonio José. Nada prenunciava essa delicadeza de saúde. Estupefato com a cena, fixando o céu, Frei Gil tem aí a revelação fulminante de sua culpa. Impunha-se esse golpe fatal para que o frade reencontrasse o caminho da igreja. Antônio José apenas se esconde e reage contra os ataques recebidos, mas não tem iniciativa. O autor se serve delas para enunciar certas convicções pessoais e definir os erros do mundo. Mariana monologa sobre o destino de comediante e Antônio José exprime suas crenças estéticas, parecidas com as de Magalhães. O texto envereda para apreciações críticas, suscitadas pela obra do Judeu. O Conde admoesta-o: “tu pecas porque queres”;/bem podias/compor melhores dramas regulares/imitar Molière; /tantas vezes/Te dei este conselho”. Ao que Antônio José objeta; “Molière escreveu para Franceses./(...)E eu para Portugueses só escrevo;/Os gênios das Nações são diferentes”.
O movimento ascendente do povo, nessa quadra da evolução social, ressoava na sensibilidade justiceira do escritor. Estes versos revelam consciência histórica do processo de libertação: “Contanto que os impostos pague o povo,/Que cego e mudo sofra, que obedeça,/E viva se pensar, eles consentem/Que o povo se divirta”.(...) “Nasce de cima a corrupção dos povos”./(...) “O povo acordará”. A tragédia até, no seu contexto, um protesto contra todas as formas de injustiças.Antônio José não abdica de sua religião porque, acima das crenças particulares, se coloca um conceito superior de divindade. No último ato ele confessa: “O Deus a quem meus pais sempre adoraram/É o Deus que eu adoro, e por quem morro./ele me há de julgar”. Frei Gil pergunta: “E Jesus Cristo?”; e o judeu retruca: “É Santa a sua lei, assim os homens,/Por quem ele morreu, a respeitassem”. Advoga-se a santidade de qualquer religião, desde que professada com pureza. Frei Gil, embora arrependido, não pode mais evitar o sacrifício de Antônio José (o texto não informa se ele tentou) mas os dois se irmanam no sofrimento e no estoicismo da condenação terrena, certos da sobrevivência na eternidade.

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