segunda-feira, 16 de junho de 2008

França Junior


França Junior

O verdadeiro continuador de Martins Pena, de fixar costumes, foi França Junior (1838-1890), diversas características análogas, presas à crônica da realidade à sua volta aproximam a obra de ambos, embora a distância de algumas décadas devesse forçosamente alterar a visão da sátira.
Martins Pena é mais ingênuo e espontâneo, formado no clima romântico. França Junior é mais realista e elaborado e se deixa, às vezes, contaminar pela vulgaridade que se propagou nos espetáculos da segunda metade do século. O fundador da comédia brasileira preserva a pureza do sentimento juvenil. O consolidador do teatro de costumes não poupa ninguém, satisfazendo-se em cobrir de ridículo até os bem intencionados. Dificilmente se apóia no meio-termo: ora admite a graça pesada, o mau gosto claro, a presença dos menos exigentes padrões cômicos, dentro da quase anedota; ora mostra um grande domínio da carpintaria teatral e usa com segurança diálogos simultâneos e elipses, ambicionando exprimir complexas arquiteturas cênicas. Acompanha-se através da obra, o caminho evolutivo percorrido pelo autor.
Quando residia em São Paulo, como estudante de Direito, começou a escrever para o palco. O primeiro texto – Meia Hora de Cinismo – tem tudo da brincadeira de rapazes, bate-papo mais do que peça orgânica. Parece uma “estudantada”, feita com a verve e a graça de quem já mostrava real talento. Os veteranos caçoam de um calouro que não tem esportividade, mas os ânimos se pacificam na confraternização da bebedeira. Como um espectro para o estudante endividado, surge com pontualidade o implacável credor. Para que o pano baixe sem preocupações, é preciso que ele seja pago, e um colega salva providencialmente o faltoso, mas o agiota não se retirar de cena sem ouvir impropérios da rapaziada. “O cinismo” do título não significa a imprudência hoje atribuída à palavra. Ele se refere a tédio e aborrecimento, que os estudantes quebram com essa “rabequeação”.
O motivo do credor retorna em outro ato único: Ingleses na Costa. O título despista o leitor, mas o diálogo logo o esclarece. Balzac chamava os credores de Ingleses, e por isso a expressão pode ser traduzida para “credor à vista”. Um tio vindo do interior, para coibir os esbanjamentos do sobrinho, paga as dívidas, com a condição de que ele silencie sobre o que se passara ali: fora sensível à tentação de companheiras fáceis. A sátira vai incidir nos Tipos de Atitude, comédia apresentada também sob o titulo O Barão de Cutia. Os “tipos da atualidade” caricaturados não primam por nenhuma grandeza – revela, em tudo, o padrão medíocre. Seria esse o retrato da sociedade da época. Os temas ligados à anedota aparecem, entre outras, nas comédias. O Defeito de Família. Entrei para o Clube Jacome, O Tipo Brasileiro, Dois Proveitos em um Saco e A Lotação dos Bondes. O autor se avizinha, aí, da revista, cujos efeitos cômicos são extraídos de fáceis qüiproquós.
Ainda entre os textos em um ato, Maldita Parentela parece-nos mais sugestivo. O novo-rico oferece uma festa prestigiada por autoridades e figuras do meio social, com o objetivo de arranjar um casamento vantajoso para a filha. Como sempre, a moça já tem o seu preferido, jovem de futuro mas podre e sem nome de família. Acolhendo uma convenção teatral que remonta à Comédia Nova grega, há uma cena de reconhecimento, pela qual o rapaz descobre o pai e a condição do primo da moça. O ricaço mal-educado, que foi preterido, pede no estratagema que lhe armaram a mão de outra jovem, e a troca foi da conveniência geral. A maldita parentela é o lado da mulher- dote incômodo que ela trouxe ao novo-rico. É, sobretudo, o pretexto para as situações cômicas, exploradas com objetividade e desenvoltura pelo autor.
No mesmo gênero, Amor com Amor se Paga fixa um episódio mais original, mantido inteligentemente na comédia, quando uma fala hábil poderia convidar ao dramalhão. Depois aceita a coincidência como ponto de partida, o desenvolvimento da trama se processa com certa lógica. Miguel Carneiro, fugindo de uma situação comprometedora, entra ao acaso na sala elegante de Vicente, que terá ali, dentro de poucos momentos, á hora da ceia, uma entrevista amorosa. A farsa exigiria que Miguel se escondesse debaixo da mesa e eis que, desse local pouco agradável, ele reconhece que é com sua mulher que se estabelece o colóquio. Assustada com a perseguição ao seu frustrado Romeu, a outra mulher aparece também ( naturalmente ao acaso), naquela sala, e descobre que é seu marido o outro homem presente. Dois indivíduos, sem o saber, cortejavam um a mulher do outro. Felizmente, a aventura não passara do domínio intelectual. Uma diz ao galanteador que ama muito o marido. “Há neste peito, porém, muita sede de poesia, e o senhor não é para mim neste momento mais que o ideal de um belo romance, que acabo de ler”. Miguel, sob a mesa, comenta, em aparte: “É o Raphael de Lamartine. E fui eu quem o comprou! Eu acabo por atacar fogo em todas as livrarias”. A outra fala a Miguel: “Eu amava muito meu marido. Por que veio desinquietar-me? Estou perdida por causa de um namoro de passatempo...”. O conquistador não pode atuar mais a conviva da ceia: “Decididamente não é uma mulher; é um romance vivo. Sou para ela D. Juan, Gilbert, Dartagnan, tudo que tem saído da cabeça dos poetas, menos o que sou”. Face a face cabe a explicação de Miguel: “Enquanto o Sr. Fazia a corte à minha metade, eu constipava-me no seu galinheiro à espera da sua. Mas já lhe disse que pode ficar tranqüilo; o divino Platão velava por nós”. Ironicamente, a comédia acaba com um cântico em louvor do filósofo grego e seus versos finais dizem: “Onde plantas teu domínio/Reina a ordem, impera a paz”.
Informa Artur Azevedo que França Júnior se popularizou com Direito por Linhas Tortas, comédia em quatro atos, que obteve um êxito excepcional em 1870, na montagem da Fênix Dramática. A comédia foi escrita depois de um pequeno intervalo de arrefecimento e desânimo do autor, e abriu espaço para um novo período.
Direito por Linhas Tortas, não obstante, um primeiro ato, bem feito, e o diálogo vivo, e ágil, não mostram o melhor de França Júnior. O autor já investiga, sob a faceta cômica, as relações de casais, que lhe inspirarão, mais adiante, a divertida sátira ao feminismo, em As Doutoras. A peça com outros componentes que se tornarão comuns no nosso teatro ligeiro; a transferência desagregadora de uma família do Interior para o Rio de Janeiro; e a graça primitiva e sensual da mulata, provocando o apetite masculino. Motivos básicos da burleta A Capital Federal, de autoria de Artur Azevedo, amigo e quase colaborador de França Júnior, num projeto que a doença deste não deixou concretizar-se.
Em 1876, França Júnior afastou-se outra vez do teatro, para publicar nos jornais uma série de crônicas, enfeixadas mais tarde em volume, sob o título de Folhetins. Depois Artur Azevedo, num estudo de 1906, que serve de prefácio a esse livro: “em 1881 depois de prolongado descanso como autor dramático, França Júnior assentou o plano de uma comédia, Como Se Faz um Deputado, Artur Azevedo realizasse a peça, comprometendo-se a providenciar a sua montagem, nas melhores condições possíveis. “A Lei Saraiva, promulgada durante os ensaios, obrigou o autor a substituir Como se Faz por Como se Fazia, de modo que a comédia parecia um elogio à famosa “idéia-mãe”. Estão na comédia as melhores qualidades de França Júnior, que revela particular espírito na sátira dos costumes políticos. A ação transcorre no interior da província do Rio de Janeiro, fixando o processo ascensional de um recém-formado bacharel em Direito ao posto de deputado. Passa-se em cena o episódio da votação, com a interminável chamada de defuntos e a troca de eleitores.
O apoio ao jovem bacharel é tratado pelo pai, rico fazendeiro, que inclui no negócio o casamento com a filha de outro chefe político. Limoeiro representa o poder econômico e o tenente-coronel, a influência; é liberal e o amigo, conservador. Assim, o governo fica sempre em família. Limoeiro diz ao filho que toda carreira é problemática no Brasil, saldo a política. Quando o filho lhe informa que as opiniões políticas são “coisa em que nunca pensei”, o pai fica satisfeito. “Pois olha, és mais político do que eu pensava”.
O autor castiga as oligarquias que dominam o país. E vem o veredito sobre a inconsistência dos partidos, eu não conheço dois entes que mais se assemelham que um liberal e um conservador, são ambos filhos da mesma mãe, a Sra. D. Conveniência, que tudo governa neste mundo”. No teatro, em fins do século passado, França Júnior já diagnosticava a vida política nacional com uma penetração válida até os dia de hoje.
O autor acrescenta o colorido brasileiro ao esquema tradicional da comédia. Como num texto de Plauto, o fazendeiro liberta o escravo que serviu de cabo eleitoral, assegurando a vitória do jovem.Como se Fazia um Deputado pode ser considerada um marco da nossa comédia e da observação do temperamento nacional.
Caiu o Ministério! Provavelmente se valeu da peça Quase Ministro, de Machado de Assis (que lhe é anterior de quase duas décadas), e da sátira aos estrangeiros, inaugurada por Martins Pena e que já lhe sugerira O Tipo Brasileiro. A filha de Felício de Brito não interessa ao círculo de caçadores de dote, porque não tem fortuna. Basta confirmar-se a notícia de que o Conselheiro foi chamado para organizar o Ministério e sucedem-se as declarações sentimentais. Naturalmente acompanhadas de um pedido ao pai ministro. Na composição do Ministério, Felizardo declina do convite para ocupar uma pasta, por sentir-se velho, mas indica para a vaga um sobrinho, o Dr. Monteiro, “o meu Cazuzinha”. Bacharel de 22 anos que chegou da Europa com a cabeça cheia de Spencer e Schopenhauer e sobretudo de retórica. O indefectível Inglês pergunta, com a sua natural estupefação: “Toda ministéria estar doutor em direita?”. E mais: “Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta batatas e café, e sabe todas essas cousas de guerra?”. Naturalmente, um país assim parece-lhe ideal para os projetos mirabolantes. O trem puxado por cachorros, O Ministro patrocina (por insistência da mulher de Felício de Brito) o “sistema cinófero” e dá margem a amplas críticas da Câmara e da Imprensa. A conseqüência é a queda do Ministério. Em plena época do bacharelismo, o autor não o poupa: “se o ser bacharel em direito fosse um empregado”.

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