sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Solidão nos campos de algodão


A estréia, no Brasil, da peça de Bernard-Marie Koltès, foi encenada por Gilberto Gawronski e Ricardo Blat, em 1996. Treze anos depois, sob a direção de Caco Ciocler, esse inquietante texto é remontado no Brasil, com ares de superprodução, no espaço cultural dos Correios, no Rio de Janeiro.
Na peça, apesar de não haver uma ação evidenciada, a solidão dos dois homens que estão em cena o tempo todo, e o conflito que se estabelece até o final da peça, sobretudo, pela contraposição dos longos monólogos de ambos os personagens que aparentemente subentendem dois lados complementares de uma situação em que dois homens sem nome e sem referências passadas explícitas, expõem, por intermédio da palavra, um jogo de sugestões e referências indiretas ao tráfico de drogas, as mercadorias ilícitas, de uma maneira geral, e ao homossexualismo, diversas vezes na peça, também pensado como mercadoria. As qualidades poéticas do texto são ressaltadas pela bela e jovial tradução de Camila Nhary.

Na montagem dirigida por Caco Ciocler, o cenário é o grande destaque. Além de possibilitar um fascinante jogo de gato e rato entre os personagens, favorecido pelo ambiente natural da noite na praça 15, no Rio de Janeiro. O palco a céu aberto cria uma atmosfera mágica para a peça. Os muitos conteineres onde, inclusive a plateia é acolhida, colabora com o clima de "lugar proibido", de lugar de difícil acesso. Os figurinos e a luz valorizam cada detalhe do trabaho dos atores, apesar de a luz, em alguns momentos, não colaborar muito com a visualização do que acontece em cena, momentos nos quais eles deveriam aparecer ao invés de se esconder, a iluminação acaba criando áreas de sombra que não favorecem o clima instaurado.
O espetáculo é encenado para 110 espectadores que se sentam em cadeiras dentro de conteineres que parecem fazer parte do cenário, onde os dois personagens se encontram. O diretor consegue imprimir ação ao texto por meio da sugestão, estabelecendo este jogo de gato e rato, de compra e venda, trabalhado com muito vigor físico por parte dos atores. Armando Babaioff e Gustavo Vaz tem grande domínio corporal e tem ótimas performances, mas por vezes parecem duas metades de um mesmo homem. O único problema desta montagem parece ser de caráter técnico, por vezes, poucas vezes, diga-se de passagem, problemas com os microfones nos impedem de ouvi-los com clareza.
A montagem pulsa com um vigor de enfrentamento bem a cara dos tempos nada idílicos em que vivemos.

domingo, 13 de setembro de 2009

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Ou Hamuretsu




Dramaturgia: Marcio Moreira
Com: Cia dos Atores invisíveis
Dir: Marcio Moreira

Um espetáculo de imagens extraordinárias e ritmos oscilantes, em que a atuação de Kátia Jorgensen tem grande destaque.
Assim como, também tem destaque os figurinos e a maquiagem, muito interessantes, sobretudo a dos atores Pedro Naine, Kátia Jorgensen e Paula Larica que desenvolveram pesquisas evidentes de uma das bases do espetáculo: O teatro Kabuki. Aliás, uma característica muito interessante do teatro atual, que vem perdendo sistematicamente espaço nas casas de espetáculos da cidade do Rio de Janeiro para os chamados Stand’up comedy, é a incidência, quase vertiginosa, de múltiplas referências, exigindo do espectador uma visão de mundo ampla e sofisticada, como por exemplo: o teatro Kabuki, o próprio Hamlet e o teatro invisível de Yoshi Oida. Além de, em planos de menor importância, as relações pessoais entre um coveiro (Rangel...) assumidamente gay e um outro que não se assume(Rubens Moreira). Um caso meio disfarçado entre o diretor e uma das atrizes, uma competição velada entre as duas atrizes principais e “amigas”. Enfim, parece haver uma história paralela para cada par de atores, mesmo os hilários Rozenkrantz e Guildersterns (Natalia e ...).
No entanto, as atuações oscilantes, o que dificilmente deixa de acontecer em elencos jovens e grandes. O fato é que alguns atores parecem inteiros em seus papéis de atores/personagens, ao passo que outros parecem interessados somente em suas cenas, e passam muitas vezes na peça como espectadores sem nenhuma expectativa. Pois aí parece residir um detalhe da direção que chama muita atenção e poderia chamar muito mais caso houvesse maior coesão por parte do elenco: é preciso ser personagem o tempo todo, mesmo quando se está efetivamente em cena como personagem ensaiando Hamlet e quando se é o ator discutindo ou simplesmente não fazendo nada. Aliás, nunca se está em cena fazendo nada. É tarefa do ator sempre preencher os vazios da cena.
Em Ou Hamuretsu fica clara uma intenção/tensão de construir um espetáculo que a partir do Hamlet, de Shakespeare, consiga discutir o teatro contemporâneo sem nenhum pudor de deixar o texto clássico um pouco de lado, apesar das analogias permanentes, como o diretor/Rei Cláudio, a amante do diretor/Rainha Gertrudes, ou o diretor deposto/fantasma (numa participação comovente, sobretudo para os estudiosos de teatro, do grande mestre/ator Yoshi Oida) que, na verdade servem de “costura” para o desenvolvimento da trama. Uma trama que, diga-se de passagem, tem diversas tramas paralelas, no melhor estilo shakespeareano.
Interessante também é a demonstração de elementos importantes do teatro Kabuki, pouco conhecido do público brasileiro, mas muito popular no Japão, mas falta um pouco desse elemento surpresa tão interessante que é o kabuki, no gestual da maioria dos atores, ao menos quando eles estão encenando/ensaiando a peça.
De ruim só a intervenção infeliz da trilha sonora do espetáculo na sala vizinha, que mostra mais uma vez, que assim como em outros espaços com diversas salas de espetáculos, falta muito para o Rio de Janeiro ter centros culturais com salas de espetáculos apropriadas para espetáculos simultâneos. É isso!




Edvard Vasconcellos.

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Festa de família


Dir: Bruce Gomlevski

O filme “Festa de família”, foi talvez, o mais reconhecido filme de um movimento cinematográfico conhecido como Dogma 95. Depois do filme, veio a peça, seguindo uma herança genética escandinava de dramas pessoais, familiares com uma contundência e uma violência verbal de deixar de queixo caído qualquer um pouco mais puritano.
Ibsen, Strindberg, Bergman, são a árvore genealógica de um texto em que o clímax está no começo da peça quando o protagonista, na versão brasileira interpretado pelo diretor/ator Bruce Gomlevski, faz uma confissão que, aparentemente levaria a família a sua mais completa destruição. O que acontece a partir daí é que se mostra extremamente instigante: descobrir como aquela família administra aquele trauma e o absorve em nome das convenções familiares mais banais.
É claro que a partir dessa confissão os valores morais de toda civilização vão sendo colocados à prova e a “festa de família” não tem lá seu final feliz. É um ensaio sobre os limites do homem, sobre a capacidade de agüentar a baixeza da vida e de saber que nunca haverá um momento propício, ou adequado para se falar de determinadas coisas.
É uma peça seca, com atores maduros, com algum destaque para Otto Jr, Peter Boos (cantando e mantendo-se fiel ao espírito de festa para o qual foi convidado, tentando salvar a todo custo o que não tem redenção possível) e o próprio Bruce; a direção é firme e ousada, propondo, certamente em parceria com o cenógrafo, uma interessantíssima disposição espacial, com o público sentado ao lado dos atores na mesa de jantar onde acontece a festa. Figurinos e luz são corretos. É isso!

Edvard Vasconcellos

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: As artimanhas de Escapino


De: Moliere
Com: Cia de Atores de Laura
Dir: Daniel Herz

Sete anos atrás, estreava nos palcos do Rio de Janeiro, o espetáculo “As Artimanhas de Escapino”, da Cia de atores de Laura, dirigida pelo talentosíssimo Daniel Herz.
Com um grupo firme e coeso, em que os homens se destacam ligeiramente, os Atores de Laura seguem uma trajetória de constante evolução ao longo de 16 anos de existência. Desde que Daniel Herz e Susana Kruger, fundaram a companhia a partir de uma sequência de oficinas oferecidas na casa de cultura Laura Alvim, em Ipanema, de onde surge o nome da Cia e a atual formação do grupo que, praticamente não mudou ao longo desses muitos anos.
A atual sede dos Cia de Atores de Laura é o teatro Miguel Falabella, em pleno coração do comércio e do entretenimento na Zona Norte, o Norte-shopping.
A peça “As artimanhas de Escapino”, escrita pelo gênio da comédia: Jean Baptiste de Poguelin, conhecido por todos como Moliere, tem quase 400 anos de idade e, é inspirado nos famosos “canovacci”: que são pequenos roteiros de comédias dell’arte, um tipo de comédia sem texto, baseado nos improvisos, a partir desses guias/roteiro/canovacci, com tramas simples, em que os atores atingem o máximo em sua representação, na medida em que se especializavam em determinados papeis, ou seja, o ator que representava o papel de Escapino, um criado esperto e trapalhão que, no final, resolve todos os problemas satisfatoriamente, provavelmente o representaria por toda a vida.
A genialidade de Moliere está justamente em impor um texto a um roteiro da comédia dell’arte e, ao mesmo tempo manter-lhe o frescor de um espetáculo improvisado. Cia de Atores de Laura e Moliere, uma bela dupla. É muito gratificante quando o destaque de um espetáculo é o próprio espetáculo. Saúde, paz e prosperidade para este divertido espetáculo e para grupo de grandes atores. É isso!
Edvard Vasconcellos

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Apocalipse, segundo Domingos Oliveira


De: Domingos Oliveira
Grupo: Fúria Fábrica de Teatro
Dir.: Márcia Zanellato

Oficinas de teatro são capazes de produzir bons espetáculos? Essa é uma pergunta fácil de se responder ao se assistir “Apocalipse, segundo Domingos Oliveira”. E a resposta é: sim! E parece que a fórmula é relativamente simples: um excelente texto, uma turma de atores nada amadores, muitos inclusive profissionais tarimbados, com anos de estrada, um protagonista em grande forma e uma direção que não dificulta em nada a cena que, pelo contrário, mantêm uma impressionante “limpeza cênica” apesar dos atuais 27 atores em cena, de um grupo que originalmente eram 48.
Mas nem tudo são flores no espetáculo, as cenas de platéia não são atraentes e não cumprem a função de aproximar o público da cena e, em um teatro de palco italiano, com um balcão ainda por cima, a visão fica muito desfavorecida quando as cenas acontecem na platéia; a luz é criativa, mas quando é escura, é escura demais por tempo demais, no entanto cenário, figurino e maquiagem, são bem interessantes e os atores tem bom domínio de palco e do corpo.
O destaque da peça é capacidade de Gregório Duvivier, sem dúvida alguma, é uma das grandes revelações do teatro carioca, de fazer uma “caricatura” de um Domingos Oliveira/Deus, genial. Aliás, Gregório, há seis anos em cartaz com o Z.E. (Zenas Emprovisadas), me parece, presta sua homenagem, como um Deus/caricatura, a essa emblemática figura que é Domingos Oliveira, grande homem de teatro, de cinema e da televisão brasileira. É isso!

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Diálogo dos pênis


De: Carlos Eduardo Novais
Com: Roberto Frota e Marcos Wainberg

Diálogo dos pênis é a evolução do espermatozóide careca. Em 2002 Carlos Eduardo Novais e Roberto Frota, amigos de adolescência, juntaram-se para responder a altura a provocação muito bem-sucedida feita aos homens que era a peça monólogos da vagina. Eles dois, mais o ator Hélio Ribeiro que depois de dois anos em cartaz foi substituído pelo ator Marcos Wainberg, com quem Frota faz uma parceria divertidíssima de inabalável sucesso há pelo menos cinco anos.
A peça trata de um prosaico encontro de dois amigos, na meia–idade, num bar em uma cidade qualquer. O papo evidentemente são as mulheres, seus gostos pessoais, suas preferências etc. E ali, naquela mesa, desfiam um verdadeiro rosário de mulheres, tamanhos, formatos, pelagem, cores e idades, sem apelar, em momento nenhum para uma vulgaridade extrema. Aliás, diga-se de passagem, a única coisa vulgar na peça é o título, o que, de certo foi um apelo de marketing atrativo para aqueles que gostavam de um teatro de apelo mais popular.
O fato inexorável é que apesar de sete anos terem se passado, desde a estréia na extinta cada do riso, no Leblon, o espetáculo mantém o seu frescor e diverte o público. Um verdadeiro sucesso já assistido por mais de cem mil pessoas em mais de duzentas cidades desse país. Os muitos fãns arregimentados nesses anos de trajetória já cobram um novo espetáculo para percorrerem novamente o Brasil e quem sabe manter um repertório de duas três peças com a garantia de qualidade de um Roberto Frota e de um Marcos Wainberg. É isso!

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Vocês que habitam o tempo




De: Valére Norarina
Dir.: Claud Buchvald
Com: Adessa Martins, Aldebaran Oliveira, Aline França, Andrey Mendes, Colombine Meyer, Dendu Jadel, Flávio Amado, Jordana Shelly, Lorena Serafim, Maria Frignoni, Patrícia Teles e Rosa Zélia.

z Uma peça de teatro montada com estudantes/atores do Brasil e da França, das Universidades Paris 8, Unirio e UFRJ. O espetáculo fez parte do projeto “Novariná em cena”, coordenado pela dramaturga Ângela Leite Lopes, que é a tradutora para o português da obra deste autor e artista plástico francês, nascido em 1947, e que, atualmente é um dos autores mais encenados na França.
A produção textual de Valère Norarina não se insere na dramaturgia tradicional e propõe outras possibilidades de sentidos cênicos a serem explicados. Para Novarina o próprio pensamento é teatro, toda palavra para ele é jogo, formando a “Arquitetura da catedral do corpo”, que é como se refere a sua própria obra. De fato a sua escrita está na linguagem, mas na linguagem como matéria, como carne.
No entanto, apesar de uma dramaturgia extremamente filosófica e de uma relação com a cena altamente “literária”, é difícil se empolgar e, por vezes, suportar as quase duas horas de uma avalanche de frases, algumas interessantes, que nos fazem as mais diversas provocações, outras aparentemente banais e desnecessárias.
Tal e qual um observador de uma pintura abstrata, diante da qual se fica o tempo que se quiser, talvez, do ponto de vista puramente estrutural, o encontro com a obra de Novarina no palco poderia ser também livre para a platéia. Coisa que não acontece em função de, entre outras coisas, a disposição do teatro (espaço físico) constranger o espectador de sair, e como estamos acostumados a um clímax já perto do final, fica-se sempre com a expectativa de que algo venha a acontecer no fim, o que também se frustra como expectativa.
É um teatro para iniciados em teatro, em filosofia e em Novarina. Definitivamente um espetáculo para iniciados é este: “Vocês que habitam o tempo”. É isso!

Edvard Vasconcellos

CRÍTICA DO ESPETÁCULO: Hoje é dia de pecar


De: Mário Lago e José Wanderley
Dir: Deivid Bertollo
Com: Cintia Travassos, Cleidson Gonçalves, Deivid Bertollo, Rogéria Capetine, Victor Carvalho, Kamilla Anhê, e Carina Anhê.

Uma comédia de humor ingênuo, com jovens atores, curiosamente encantados com a obra de Mario Lago e de José Wanderley – curiosamente, por se tratar de obra ingênua; obra que, vista nos tempos atuais, soa tão antiga.
O espetáculo, no entanto vale como singela homenagem a este grande ator, compositor e poeta brasileiro. Símbolo de um Rio de Janeiro que não existe mais e, autor de uma “pérola” da música popular brasileira “Amélia”, aquela que era mulher de verdade...
A peça propriamente dita, em cartaz no teatro Ipanema (que, há muito já deveria ter se tornado teatro Rubens Correia, tal sua dedicação àquele espaço construído por ele mesmo em terreno onde era a casa de sua família) começa, ainda no 2º sinal com a atriz Cíntia Travassos, tirando algumas risadas do público ao adentrar a platéia fazendo a faxina e espanando as cabeças do público. Uma boa ideia da direção que não é aproveitada outras vezes, sobretudo nas inexplicavelmente longas transições de atos.
Quando toca o terceiro sinal, a faxineira retorna cantando “Amélia”, um pouco ofegante, diga-se de passagem. Ao subir no palco faz um interessante prólogo em que nos apresenta os autores da peça. O bom desse artifício é que provavelmente uma platéia jovem desconhece tanto Lago, quanto Wanderley. Finalmente a cortina se abre com a promessa de um “Vauderville” típico, talvez com contornos de opereta, o que não acontece. Ao entrar cantando para abrir o pano, a atriz estabelece um código com o público, assim como o faz ao divertir a platéia com uma cena que não tem propriamente nenhuma relação com o enredo do espetáculo que se segue.
Os atores Deivid Bertollo e Victor Carvalho, apesar do esforço, parecem jovens demais para os papéis que desempenham. O primeiro ao assumir também a função de diretor, sem que ninguém faça sua assistência paga o preço das múltiplas funções e, se o seu trabalho como ator não chega a comprometer é como diretor que comete suas maiores falhas. Sua direção permite que os atores exagerem tanto em seus trejeitos e gags em busca de humor fácil e imediato, que soam por demais excessivos. Victor Carvalho só não precisava imitar um português, já que ele seria o contraponto de humor da estratégia criada pela mulher, a atriz Rogéria Capetine (que aproveita pouco o potencial humorístico da personagem), a fim de pegá-lo em flagrante adultério.
As mudanças entre os atos são demoradas e poderiam perfeitamente incluir outras divertidas cenas com a faxineira ou motorista ou mesmo outros atores/personagens que tenham semelhante habilidade para esse contato tão direto com a plateia.
Cenários, figurinos e luz não comprometem, mas talvez ao invés de três, talvez se pudesse usar quatro portas e equilibrar a cena nos dois lados. Outro elemento cenográfico não utilizado e que potencial enorme nesse tipo de comédia eram os biombos, que se tornaram mera decoração.
Vale a homenagem e o empenho do jovem grupo. É isso!
Edvard Vasconcellos

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

CRÍTICA DOS ESPETÁCULOS: O Estrangeiro, Diário de um louco, O língua solta e Não matei, mas sei quem fui







CRÍTICA DOS ESPETÁCULOS: O Estrangeiro, Diário de um louco, O Língua solta e Não matei, mas sei quem fui.

Quatro espetáculos! Quatro monólogos! Quatro atores em cena, no auge da forma.

A opção pelo monólogo, durante muito tempo foi uma considerada uma opção difícil, com pouca possibilidade se sucesso, algo só pensável para os grandes atores, mas grandes mesmo, os dinossauros, os gênios, enfim, uma responsabilidade e tanto.
Muita coisa mudou no teatro brasileiro nos últimos vinte anos. No final dos anos oitenta do século XX, por exemplo, a opção que mais se via nos palcos da cidade, eram espetáculos com grande quantidade de atores, ao menos nos palcos cariocas. No final do século, e no começo do novo milênio pode-se dizer que as mulheres criaram coragem e partiram para um primeiro surto monológico que se estendeu até 2007, aproximadamente. Atualmente, este ano de 2009, especificamente, pode-se afirmar, sem medo de errar, que os monólogos masculinos tomaram conta dos teatros cariocas. Dividindo espaço com Stand-up comedy’s dos mais diversos, comédias ligeiras e formaturas de cursos de teatro.
Crise financeira, facilidade de traslados, espaços cênicos cada vez menores, enfim, são muitos os motivos para que um ator tome “coragem” de encarar sozinho uma platéia. Uma outra tendência bastante contemporânea são as encenações de textos, a princípio, não teatrais, como: contos e romances consagrados. E ainda há a, já bem consolidada, aposta em textos de novos autores brasileiros, que desde o começo do século vêm se tornando uma realidade muito bem-vinda em nossos palcos.
Particularmente quatro peças, quatro monólogos masculinos merecem uma atenção especial: O estrangeiro, de Albert Camus, dirigido por Vera Holtz, com um tecnicamente impecável, Guilherme Leme; O Língua Solta, de Miriam Halfim, dirigido por Xando Graça, com um inspirado e eficaz, Isaac Bernat; Não matei, mas sei quem fui, de Cesar Amorim, dirigido por Diego Molina, com um divertidíssimo César Amorim; e, finalmente, Diário de um louco, de Nicolai Gogol, dirigido por Alexandre Bordallo, com um amadurecido e surpreendentemente emocional Cláudio Tovar, são espetáculos que, entre outras semelhanças, sobrevivem em cartaz na cidade do Rio de Janeiro, tendo comportamento de show. Ou seja, sobrevivem “pulando” de teatro em teatro, em curtas, e às vezes, curtíssimas temporadas, pelos muitos centros urbanos que se espalham pela cidade do Rio de Janeiro.
Eis aí uma discussão interessante, na medida em que se descobre, ou, ao menos se levanta a hipótese de que não há mais um lugar certo para se manter em cartaz uma peça. Na verdade, há vários lugares possíveis, que oferecem temporadas cada vez mais curtas, em teatros cujos aluguéis são exorbitantes. E, se um ator quer ser visto, parafraseando Milton Nascimento, “ele tem de ir onde o público está”.
É fato que, depois do 11 de setembro, depois das sucessivas crises políticas e econômicas, depois da queda do dólar, da bolsa de valores, da reiteradamente incompetente política de transportes públicos do Rio de Janeiro, dos preços extorsivos das peças, das equivocadas políticas culturais, da polêmica da meia-entrada, dos engarrafamentos, das tentativas de assaltos, do tumulto generalizado na hora do rush na cidade; da novela das oito, da NET, SKY, TVA, DVD, Blue-ray, YOUTUBE, GOOGLE, etc, o público desistiu, ou, se não desistiu ainda, ficou mais seletivo, e, para desespero da “gente de teatro”, bastante acomodado.
Então, parece evidente uma produção terminar adotando como estratégia de sobrevivência estrear no SESC, CCBB, CCJF, ou SESI, depois ir para o Shopping da Gávea, de preferência, ou para o Teatro do Leblon, e depois, para algum teatro do Centro da Cidade; depois, Teatro dos Grandes Atores, na Barra, algum teatro em Copacabana, se ainda existir, pois a decadência é tanta em Copacabana que só existem dois teatros em funcionamento onde, outrora havia dez teatros; assim como, só há um cinema, onde, até a última década do século XX, havia oito salas.

Sobre as peças:

O estrangeiro, de Camus, é um ícone do existencialismo, movimento filosófico importantíssimo no século XX; um romance filosófico que fez história nos anos sessenta. Até hoje faz parte da maioria das antologias lançadas em bancas de jornal. Então, é bem possível que todos nós tenhamos um exemplar em casa e nunca tenhamos lido. Mas quem se deu ao trabalho de ler, certamente não passou batido pela vida daquele personagem diante de um imenso vazio interior; certamente se pôs a pensar no sentido da vida, do cotidiano, do dia-a-dia, do significado das coisas, na motivação que tanto nos dizem ser importante para a vida. O que nos motiva? Para que serve tudo o que fazemos? É possível, simplesmente, viver a vida sem nos deixar impactar pelos acontecimentos? Vale a pena ver a peça, ler o livro, e tudo que se produzir sobre essa obra porque todos somos um pouco estrangeiros diante da vida. E a peça ainda tem o trabalho esplendoroso de um ator numa idade em que consegue unir vigor físico e experiência, uma grande atuação de Guilherme Leme e uma suave e sutil direção de Vera Holtz.

O Língua Solta é outro monólogo que apresenta um ator experiente e ágil em cena, bem dirigido por Xando Graça, que parece ter “permitido” que, dentro de uma “partitura física” bastante rígida, Isaac Bernat apresente ao público uma grande habilidade em transformar objetos inanimados em personagens, sem que sequer percebamos como ele construiu aquelas formas animadas e, ao mesmo tempo consiga emocionar e fazer rir na mesma proporção, além rememorar uma história do Brasil que ninguém lembra ou sequer sabe que um dia existiu. A peça conta à história de Bento Teixeira que foi o primeiro poeta a ser publicado no Brasil, em 1601. O autor da Prosopopéia sofreu as agruras da perda de dois filhos, da traição e da delação da mulher ao Tribunal da Santa Inquisição. Ainda assim, o espetáculo consegue ser divertido e emocionante.

Diário de um louco é, como diz o diretor Alexandre Bordallo, a exaltação da genialidade artística que permeia a loucura, a loucura criativa, producente, construtiva. Outro excelente momento da condição do ator brasileiro. Como temos grandes atores nesse país! A peça serve a um duplo propósito ambos louváveis: comemorar os 40 anos de carreira de um Cláudio Tovar memorável, capaz de criar personagens com os quais contracena, ao longo da uma hora e meia da peça, a partir de sapatos velhos, garrafas pets, vassouras, etc. Uma verdadeira aula sobre a utilização de cenários e figurinos – Aliás, de um barroquismo delirante, e ao mesmo integralmente utilizado. É impressionante como nada, nada mesmo é excessivo em cena. Aliás, tudo parece ter tamanha utilidade em cena que depois de uma hora tentando absorver todos aqueles seres criados brilhantemente por Tovar, o público cansa. Cansa e, lamentavelmente protesta, se mexe, muda de lugar, vai embora sem muito respeito pelo “monstro sagrado” do teatro que está ali, no palco, nos brindando com o melhor dele mesmo. Uma pena que o público venha ficando cada vez meno paciente com o tempo, com a ideia de absorver uma obra com calma, lentamente. Parece que tudo hoje têm que ser vertiginoso, veloz, em ritmo de musical da Brodway, mas com a duração de uma série de TV. Chega a ser frustante! Mas apesar do público, Tovar mantém toda a dignidade de homem de teatro e nos oferece um espetáculo comovente para quem teve coragem e respeito de ficar na sala até o fim daquela pequena pérola do teatro contemporâneo.

Não matei, mas sei quem fui, de César Amorim, é uma divertidíssima comédia, filosófica; esquizofrênica, para ser mais explícito. Quando começa a peça vemos um homem num banheiro de motel, conversando com seu pênis, tentando fazer com que sua vida seja resolvida pelo sexo. Tudo parece muito corriqueiro e sem nada de especial até que entra em cena um alterego, e outro, e outro, e um outro. A partir daí, vemos em cena um ator, contracenando consigo mesmo, mas não fazendo quatro personagens diferentes, e sim, representando quatro facetas dele mesmo. É claro que isso gera uma torrente vertiginosa de humor que César aproveita muito bem. A direção de Diego Molina é firme e colabora, na verdade, muito com a atuação de César. Parece que nesse caso a direção foi muito mais uma parceria e um olhar de fora para deixar o ator livre para criar seus vários eus e enlouquecer platéia, levando-a as gargalhadas.

É isso!Edvard Vasconcellos