sábado, 24 de maio de 2008

Artur Azevedo e luta por um teatro brasileiro


A preferência progressiva pelo gênero ligeiro quase matou o drama e a comédia, em fins do século passado. A opereta, o cancã, a ópera-bufa – tudo o que fazia a delícia da vida noturna parisiense – nacionalizou-se de imediato num Rio de Janeiro ávido de alegria e de boemia, que abandonava os costumes provincianos.
Já em 1873, Machado de Assis escrevia, ao fazer um balanço da poesia, do romance e da língua no país, que o teatro poderia reduzir-se a uma linha de reticência. Segundo ele não havia teatro, naquele momento, no Brasil. Ainda, segundo o mesmo Machado de Assis, não havia, naquele tempo, nada que não fosse cancã, cantiga burlesca ou obscena, nada além do apelo aos sentidos e instintos inferiores.
Nesse mesmo ano chega ao Rio de Janeiro, vindo do Maranhão, o jovem Artur Azevedo, que, a partir de então, dominaria o teatro brasileiro até sua morte, em 1908. Considera-se que ele tenha fechado um ciclo do teatro brasileiro, que se iniciou com Martins Pena, em 1838.
Artur Azevedo escreveu cerca de duzentas peças de teatro, entre burletas, vaudevilles, traduções, adaptações e comédias. Deixou duas obras-primas: A Capital Federal e O Mambembe.
Ao chegar à capital federal com dezoito anos, trouxe na bagagem a peça Amor por Anexins que, até hoje funciona no palco pela graça e pelos ditos sentenciosos. O autor famoso e recompensado financeiramente ainda em vida se tornou um verdadeiro escravo do ofício de escritor. Teve espantosa atividade jornalística e, diversas vezes usou a imprensa para se defender dos ataques daqueles que o acusavam de não fazer um teatro novo, ousado, ou um teatro mais comprometido com as questões nacionais, com o realismo/naturalismo insurgente.
Alguns embates se tornariam famosos e num deles, travado com o Sr. Cardoso Motta, Azevedo disse: “Não é mim que deve o Sr. Cardoso Motta deve chamar de iniciador da débâcle teatral; não foi minha nem de meu irmão a primeira paródia que se exibiu com extraordinário sucesso no Rio de Janeiro”. E diz mais: “Quando aqui cheguei, em 1873, aos dezoito anos de idade, já tinha sido representada, centenas de vezes, no Teatro São Luis, A Baronesa do Caiapó, paródia de A Grã-duquesa de Gerolstein. Todo o Rio de Janeiro foi assistir a peça, inclusive o Imperador, que assistiu, dizem, mais de vinte vezes consecutivas [...]”. Chega a afirmar que seu “mestre”, o escritor Machado de Assis, a essa época já considerado um dos mais importantes escritores do país, quiçá o maior, teria colaborado, ainda que anonimamente com uma paródia de A Dama das Camélias. O autor alega ter escrito A Filha da Maria Angu, paródia de uma opereta francesa La fille da Madame Angot “por puro desfastio, sem intenção de exibi-la em nenhum teatro”. Peça que, ao ser lida, pela primeira vez, foi logo disputada por dois empresários e tornou-se um sucesso com mais de cem representações.
Escreveu A Almanjarra, uma comédia sem apartes, sem monólogos, e que esperou quatorze anos para ser encenada. Revelam seus biógrafos, que Artur Azevedo escreveu uma comédia inteiramente em versos, A Jóia, sendo coagido a utilizar um pseudônimo se quisesse ver sua obra nos palcos. Escreveu, em colaboração com Urbano Duarte, um drama, que foi censurado pelo Conservatório. Traduziu Moliere, a Escola de Maridos, em redondilha portuguesa; e a peça foi representada apenas onze vezes. Em resumo: o autor profissional que era rapidamente foi conduzido para aquele espaço em que, além de seu talento ser reconhecido, o retorno financeiro não era tão arriscado. No fim dessa polêmica com o Sr. Cardoso Motta, Azevedo acaba justificando o teatro com o qual está plenamente identificado, sendo inclusive o seu maior e mais significativo autor, dizendo que, segundo suas próprias palavras: “Não, meu caro Sr. Cardoso Motta, não fui eu o causador da débâcle: não fiz mais do que plantar e colher os únicos frutos de que era suscetível o terreno que encontrei preparado”.
Artur Azevedo vai mais longe e oferece pistas para uma gênese dessa derrocada nacional que rumou na direção contrária de um teatro realista/naturalista quando diz “quem se der ao trabalho de estudar a crônica do nosso Jornal do Comércio, verá que o desmoronamento começou com o Alcazar. [...] Depois que o Arnaud abriu aquele teatrinho na Rua Uruguaiana, o público abandonou completamente o trabalho dramático”. E continua sua defesa de um teatro popular afirmando que “não tem razão o Sr. Cardoso Motta em considerar a paródia o gênero mais nocivo, mais canalha e mais impróprio de figurar num palco cênico. Eu, por mim, confesso que prefiro uma paródia bem feita e engraçada a todos os dramalhões pantafaçudos e mal escritos em que se castiga o vício e se premia a virtude”.
É evidente que, entre a última década dos oitocentos, e a primeira dos novecentos, os muitos sucessos e os poucos fracassos de Artur Azevedo, e seus colaboradores, nos palcos fluminenses, nas províncias e mesmo em Portugal, deram o tom do modo como se fazia teatro no Brasil. É interessante notar que o próprio autor afirma reiteradas vezes que se as condições fossem favoráveis à existência de outro tipo de teatro, ele o faria, sem maiores problemas. Sabe-se, inclusive, que Artur Azevedo foi um dos maiores defensores, chegando mesmo a tornar esta luta um “cavalo de batalha”, pela construção do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, obra que só foi concluída um ano após sua morte. No mesmo ano em que morreu, foi responsável por um empreendimento de vulto em defesa do autor nacional: o Teatro da Exposição Nacional, na Urca. Nesse episódio da cultura carioca, Artur Azevedo se mostra inexcedível em sua luta pelo teatro. No teatro da exposição nacional escreve e encena a peça Vida e Morte e, em apenas três meses, monta outras quatorze peças, de autores nacionais, como Martins Pena, Machado de Assis, José de Alencar, França Junior, Coelho Neto, Joaquim Manoel de Macedo, entre outros. Além de exercer um papel-chave à frente da luta pela construção do Teatro Municipal.
Entre 1906 e 1908, Azevedo escreveu 105 esquetes, o qual chamava sainetes, trata-se da série Teatro a Vapor, publicados semanalmente em O século. Nesses esquetes desfilam pitorescos acontecimentos, que emocionaram, preocuparam ou alegraram os cariocas do início de nosso século: assassinatos, adultérios, subidas de balões, aparecimento de espíritos, congressos internacionais, manias de saúde, visitas de reis, filmes mudos, cometas, agitadores socialistas, chicanas eleitorais, greves, vacina obrigatória, negociatas, imoralidades no teatro, regresso de Rui Barbosa, derrubadas de casas, visitas estrangeiras, poluição dos automóveis, festas populares, reforma ortográfica, etc. “Se tivéssemos o teatro com que sonho há tanto anos, as circunstâncias seriam outras; não haveria de minha parte, nem da parte de outro qualquer autor, o receio de sacrificar um empresário, e então escreveríamos por amor da Arte; mas no caso da Fonte Castália, por exemplo, eu fico de bom partido, unanimemente elogiado pela imprensa, mas a empresa? ... . Essa, paga com alguns contos de réis o nobre desejo de ser agradável a um comediógrafo!”.
Cabe destacar, segundo Magaldi, que Artur Azevedo quase sempre tomou de empréstimo a outros a idéia dos seus trabalhos. Além das paródias, adotou a parceria em diversas produções. Cabe valorizar, também, a sua teatralidade. O homem teve o dom de falar diretamente à platéia, isento de delongas ou considerações estáticas. Juntando duas ou três falas, punha de pé, com economia e clareza, uma cena viva. A dinâmica dos textos nunca se via prejudicada por longas retóricas explicativas. O forte de Artur Azevedo eram os flagrantes naturalistas, que lhe proporcionavam uma colorida fotografia dos ambientes.
O mérito quase jornalístico de sua obra o levou a encontrar maior êxito nas revistas-de-ano e nas burletas, na medida em que, nesses gêneros a personagem não pode ser mais do que um esboço, as tramas devem ser vivazes e conseqüentemente simples, ligeiras. Saía sempre das situações intimistas para os painéis espetaculares. Contando a história de A Capital Federal, Azevedo justificou-lhe a forma: “[...] resolvi escrever uma peça espetaculosa que deparasse aos nossos cenógrafos mais uma ocasião de fazer boa figura, e recorri também ao indispensável condimento da música ligeira, sem, contudo, descer até o gênero conhecido pela característica denominação de Maxixe”.
Em O Mambembe, Artur Azevedo faz uma homenagem a um de seus mais queridos atores/empresários. Arthur Azevedo retratou vários tipos comuns do palco. Frazão, na realidade era Brandão, “o popularíssimo”, ator consagrado nos palcos cariocas. Contrastando com outros empresários que davam prejuízo aos donos de hotéis Frazão surge na peça como uma honestidade impecável. Ao convidar uma amadora para ser sua primeira atriz, o autor revela a crise teatral do começo do século. O amadorismo espalhado pelos bairros cariocas compensava a pobreza da vida profissional. O próprio Arthur Azevedo havia escrito em 1898: “são eles, os teatrinhos particulares que fazem com que ainda perdure alguma coisa a memória de alguma coisa que já tivemos; são eles que nos consolam da nossa miséria atual. Do amador pode sair o artista; do teatrinho pode sair o teatro”.
O mambembe dá bem a idéia de que o teatro brasileiro precisava ser construído. Na serra da Mantiqueira, em carro de boi, Laudelina contempla a paisagem e exclama: “Como o Brasil é belo! Nada lhe falta!”. Frazão replica, terminando o segundo ato: “Só lhe falta um teatro...”. O tema volta no final da peça quando Frazão deposita sua esperança no futuro Teatro Municipal que deveria ser inaugurado em 1909.
O título define não só o caráter da companhia ambulante, mas se torna símbolo do próprio teatro. Voltando ao convite a amadora Laudelina para o seu conjunto profissional, Frazão afirma: “Como a sra. sabe, a vida do ator no Rio de Janeiro é cheia de incertezas e vicissitudes. Nenhuma garantia oferece. Por isso, resolvi fazer-me como antigamente, empresário de uma companhia ambulante, ou, para falar com toda franqueza, de um mambembe”. Mambembe é a companhia errante vagabunda, organizada com todos os elementos de que o empresário pobre possa lançar mão no momento dado, e que vai de cidade em cidade, de vila em vila, dando espetáculos aqui e ali, onde encontre um teatro no qual possa representar, ou improvisar. Todos os artistas do mambembe, ligados entre si pelas mesmas alegrias e pelos mesmos sofrimentos, acabam por formar uma grande família, onde, embora às vezes não o pareça, todos se amam uns aos outros e vive-se, bem ou mal, mas vive-se. A peça, na permanente improvisação desse nomadismo teatral, desloca-se com maravilhosa liberdade de um cenário a outro. Do botequim em que se reúnem os atores a estação da estrada de ferro, da cidade de Tocos a serra da Mantiqueira, até o arraial longínquo do Pito aceso.
Quem perpasse os olhos pelas revistas-de-ano escritas por Artur Azevedo e levadas à cena quase anualmente entre 1878 e 1906, terá oportunidade de realizar uma viagem em direção ao Rio de Janeiro da belle époque. Temas que abalaram a capital federal, como epidemias de febre amarela e outras, a abolição da escravatura, os ecos da Guerra do Paraguai, o Encilhamento, a revolta da Armada, a vacina obrigatória estava lá, presente em toda a sua vasta obra teatral.
Quando chegou ao Rio de Janeiro, Martins Pena já havia desenhado seus croquis dos tipos populares fluminenses e seu painel dos costumes dessa sociedade nos meados do século dezoito. Joaquim Manuel de Macedo havia continuado a tradição dessa dramaturgia em que, como José de Alencar, foi mais feliz nas comédias do que nos dramas. Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias cultivaram um estilo tão rebuscado e erudito, que seus dramas não sobreviveram ao palco. As tentativas teatrais de: Casimiro de Abreu e Castro Alves, também resultaram frustradas, diante da impostação lírica de seus textos. A sutileza de humor de Machado de Assis não apresentou colorido nem fôlego para angariar o apreço popular. Finalmente, França Junior, pelo seu pendor humorístico foi, sem dúvida, o antecipador de um tipo de teatro no qual Artur Azevedo foi à maior referência em seu tempo, cujas obras ecoam até hoje. O autor acreditava verdadeiramente na redenção do teatro nacional através da comédia de costumes. Chegou a asseverar no final do século dezenove que “o teatro que mais convém nos países novos como o Brasil é o teatro de costumes, e esse, deixem lá, é o verdadeiro teatro” (Rio de Janeiro, Palestra, O País 24/07/1895). Porém, o começo do século foi desastroso para empresários e toda a gente de teatro. O público simplesmente desapareceu das salas de espetáculo.
Artur Azevedo chegou a convidar Chiquinha Gonzaga para escrever a música de uma de suas peças, o que não aconteceu por oposição do empresário, escravizado aos preconceitos da época. Dezenas e dezenas de atores e atrizes desfilaram na cena de seus espetáculos. Lucília Perez estreou, em 1904, em O Mambembe. Xisto Bahia, grande ator do final dos oitocentos, em 1875, atuou de forma tão impactante em Véspera de Reis que Azevedo quis dividir a autoria da peça com o ator. Rose Viliot foi estrela em A filha da Maria Angu, em 1876. Entre os atores: Vasques, Brandão, Peixoto, Marzulo, Jaime Costa e todos os grandes da época, pisaram no palco em alguma de suas peças. Chegou a ser representado em Portugal, e por Novelli, em italiano. Leopoldo Fróes, que iniciou sua carreira em Portugal, em 1909, pediu a viúva de Artur algum manuscrito inédito do autor para fins de representação. Pediu também que fosse detentor exclusivo dos direitos de montagem. Fróes, considerado por muitos o maior ator de comédias da primeira década do século XX, sempre que podia, ou se via as voltas com um ou outro fracasso, retomava sua representação, sempre bem sucedida, de O genro de muitas sogras, comédia de Artur Azevedo, escrita em 1901. Um dos primeiros papéis de Procópio Ferreira foi o de Duquinha, de A Capital Federal, em 1920, no teatro São Pedro de Alcântara, hoje João Caetano. Entre as atrizes, Pepa Ruiz, Apolônia Pinto, Ana Leopoldina, Júlia Plá, entre outras fizeram papéis de destaque em suas peças.
Figuram entre os mais renomados cenógrafos das peças de Azevedo, os italianos Coliva e Carrancini, aos quais se devem muitos dos seus melhores desempenhos. Na revista-de-ano O Rio de Janeiro em 1877, por exemplo, se via, num trabalho de autor ignorado, o plano inclinado de Santa Teresa que começava na Rua do Riachuelo. Verdadeiras mágicas operavam os maquinistas de suas peças. Em A fantasia, de 1895, um personagem faz sua mis-en-scene saindo de uma gruta, que antes era uma estátua. Novellino monta A Capital Federal e põe em cena os Arcos da Lapa com o bondinho subindo para Santa Teresa.
Em certa medida, graças à diligência deste incansável homem de teatro, pode-se levantar, hoje, a trajetória de muitos desses atores e atrizes, por intermédio dos artigos biográficos que o cronista lhes dedicara em sua crônica.
Falar dos modismos fotografados em suas peças é descrever os usos e costumes de seu tempo. Na opereta Os noivos, de 1880, por exemplo, Azevedo descreve a febre das grandes plantações de café. Em outra do mesmo ano, A princesa dos Cajueiros, lá está o pregão dos vendedores de peixe feito através de buzinas. Na revista-de-ano O Mandarim, de 1884, um rol de males, dos quais alguns desapareceram, enquanto outros permanecem com nomes distintos, e mesmo, outros que ressuscitaram, como por exemplo: a febre amarela. Se, sumiram o capoeira, as amas-de-leite e a escravidão, o mesmo não se pode dizer da mendicância, da imprensa marrom, do vício do jogo, dos roubos, dos cortiços. Cento e poucos anos atrás, verifica-se que as revista-de-ano glosavam até mesmo os acontecimentos internacionais.
Em 1903 ele redigiu um jornal onde escrevia uma espécie de epitáfio: “quando eu morrer não deixarei meu pobre nome ligado a nenhum livro, ninguém citará um verso meu, uma frase que caísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: ‘ele amava o teatro’, e este epitáfio moral é bastante, creiam, para a minha bem aventurança eterna”. Quando morreu, sua patriarcal figura deixou um imenso vácuo. Caiu de súbito um vazio sobre a paisagem cênica do Rio de Janeiro.

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