domingo, 20 de abril de 2008

Primórdios do teatro no Brasil: a catequese


Em 1549, a pedido de D. João III, que sentira a necessidade de contar com alguém nas Colônias, que acreditasse em algo além da simples ambição e os prazeres carnais, chegou ao Brasil a primeira missão jesuítica, chefiada por Manoel da Nóbrega. Tornava-se necessária na Colônia à presença de alguém que humanizasse o selvagem. Pensando assim, o rei “Piedoso” solicitou o auxilio dos filhos de Loiola.
Foram muitas as dificuldades dos jesuítas. Por um lado encontravam a má vontade dos colonos movidos pela ambição, por outro, encontravam um índio arredio e revoltoso contra o estrangeiro/branco. Precisaram contornar, além disso, a incompreensão do clero, que se mostrou incapaz de aceitar os métodos aplicados na catequese jesuítica.
Reunir os índios em aldeamentos, em bases permanentes foi o primeiro passo. Uma vez dispostos em aldeias, era possível separar o elemento cristianizado das influências do pagão. Também se poderia fixar ao solo o indígena que, habitualmente era nômade. Os aldeamentos passaram a ser um lugar de trabalho, oração, e diversão.
Inteligentemente os padres jesuítas souberam tirar partido dos dotes naturais dos indígenas. Aderiram inicialmente à música, traduzindo para o tupi os cânticos e hinos religiosos da igreja romana: “cantavano in solfa, le orazioni e i mistere delta fede nella lingua del paese”. Quando partiam em missões, os padres se faziam acompanhar por um grupo de crianças já catequizadas. Ao se aproximarem de algum aldeamento selvagem, mandavam-nas à frente com o crucifixo na mão, cantando benditos, loas e ladainhas. Os selvagens, maravilhados com a novidade do espetáculo oferecido, e transportados em êxtase pela música, acompanhavam os padres até a aldeia dos já cristianizados. Começava, então, para os recém chegados o processo de catequese. Ao mesmo tempo em que ofereciam ao silvícola, embora traduzida para o tupi, a música da escola italiana, aderiram também os jesuítas ao ritmo da música e da dança indígena.
Manuel da Nóbrega chegou mesmo a ser repreendido publicamente pelo bispo D. Pero Sardinha, por sua adesão ao ritmo selvagem e por ter permitido a entrada no culto divino, de instrumentos, cantos e costumes indígenas. O bispo não foi capaz de compreender que tal método de catequização atingia os indígenas de forma muito mais contundente.
Os jesuítas, a exemplo do que já faziam os franciscanos, não hesitaram em aproveitar mais ainda esse instrumento de civilização. É lógico que sendo a catequese a finalidade primeira da companhia de Jesus, esta deveria sobrepor-se a toda e qualquer preocupação literária. Desta forma, a estética do teatro jesuítico vai buscar suas origens no mais tradicional teatro hierático (formas rígidas e majestosas impostas por certas tradições sacras) medievo. Ao abandonar, em tudo, os ideais estéticos da Renascença, podemos filiar o teatro jesuítico praticado no Brasil, na mesma predominância literária do teatro de Gil Vicente, o qual, ao romper com o classicismo, mergulhou suas raízes nos autos populares medievais. Gil Vicente em tudo foi um protobarroco, e o movimento barroco, assim como a Companhia de Jesus, nasceu da Contra-Reforma, Encontramos na obra Vicentina, assim como nos autos jesuíticos, as mesmas liberdades de ação, tempo e lugar, um número de personagens muito além do permitido pelas regras clássicas, o uso e abuso do grotesco em contraste com o sublime, a introdução de crítica social e de costumes, personagens reais dialogando com personagens abstratos, a dualidade de sentimentos como elemento constante, coadunando-se com os propósitos da Companhia, assim como os da doutrina que pregava.
O teatro jesuítico foi uma arma poderosa no combate à antropofagia, às superstições, às mancebias e a todos os vícios, fossem eles dos gentios ou dos colonos, como também “aprimorava o culto, familiarizava os aborígines com as figuras sagradas”.
Na elaboração de seu teatro, buscavam os jesuítas assuntos calcados na hagiografia (biografia ou escritas dos santos), nos mistérios da religião, nos dogmas da própria Igreja Católica, nos pequenos autos populares já existentes, e, nas circunstâncias que motivavam as representações. Escolhido o tema, não hesitavam em empregar na elaboração do texto os mais diversos elementos tirados da vida. Com esta liberdade, podiam se referir diretamente a pessoas reais, exortando-as a que mudassem seu modo de viver. Nos dois fragmentos, conservados por Simão de Vasconcelos e atribuídos ao Auto da Pregação Universal pode-se notar que não apenas a pessoa, bem como, seus pecados são nomeados, enquanto se implora que este mude seus hábitos de vida.
“A viagem está acabada,
A nau vai-se alagando,
E desta vida em que ando,
Por tantas causas errada,
Meus dias já não são nada,
Pois peco por tantas vias;
Triste de Francisco Dias!
Não lhe sinto salvação,
Se vós, Mãe da Conceição,
Não pagais as avarias.”
Nesse fragmento há a citação direta de um Francisco Dias, cujo mau viver ocasionava críticas da Companhia. O outro fragmento se refere a Pedro Guedes, que vivia amancebado e com isto deveria causar grande escândalo na pequena sociedade colonial:
“Virgem pura, sou quem vêdes
Diante de vós me venho,
Tirai, vos peço, estas rêdes,
A este pobre Pero Guedes,
E quantos pecados tenho;
Acho-me tão enredado
Que hei medo da perdição,
Quero deixar o pecado,
E ser devoto casado,
Na vila da Conceição”.

Sabe-se que o Auto da Pregação Universal foi apresentado em diversos trechos da costa. Há, também, referências que relacionam pessoas residentes nos diversos locais onde o Auto era representado.
Elementos da mitologia indígena como os “anhangás” ou diabos, eram também aproveitados na elaboração dos textos dramáticos. No Auto de São Lourenço, os diabos índios são habilmente explorados, conseguindo o autor deles obter grande efeito cênico. Nesse Auto, é possível encontrar Guaixará, o rei dos diabos, servido por dois criados, Aimberé e Saravaia, os quais, por sua vez, são servidos por uma série de diabos menores: Urubu, Tataurana, Caborê, Jaguaruçu e outros. Como a construção dramática dos autos jesuíticos permitisse total liberdade, pois não se obrigava a ter unidade no enredo, encontramos dialogando, com a maior naturalidade, imperadores romanos e diabos índios. A figura do diabo e de seus assistentes tem grande predominância nos autos jesuíticos, Tal como acontecia nos autos medievais. Sem temor, podemos afirmar que o clímax do texto, do ponto de vista literário, ou da encenação, concentra-se nos momentos em que estão em cena figuras de diabos.
É fato comprovado que os jesuítas sabiam aproveitar bem os elementos tirados do folclore dos povos indígenas. Tendo a finalidade específica de educar e catequizar, a trama, o enredo dramático se dirigia basicamente ao colono, na maioria das vezes rude e inculto, e ao indígena.
O teatro cultivado pelos jesuítas eram de três tipos: Autos, Comédias e Tragédias. Na época também eram cultivados os “diálogos” e as “églogas pastoris”, e apesar da menor produção, os jesuítas não ficaram indiferentes a esses gêneros literários.
Um elemento determinante do gênero e da estrutura dramática dos espetáculos jesuíticos era o local onde deveriam ser realizados. Os autos eram apresentados ao ar livre, nas aldeias de índios evangelizados ou semi-evangelizados, ou, então, nas cidades fora ou dentro das igrejas, para a população, em geral. As comédias e tragédias se representavam na “grande sala de estudos” dos co1égios, para visitantes e estudantes.
As representações podiam ser de duas formas: concentrada e dispersiva.
Na concentrada, as representações realizavam-se num só ponto - dentro ou fora da igreja. Eram armados estrados para servirem de palco. Um exemplo típico de espetáculo de representação concentrada é o último Auto escrito por Anchieta: Na Visitação de Santa Isabel.
Nas representações em forma dispersiva, os personagens se distribuem pelo trajeto por onde deverá passar o cortejo. O Auto de Anchieta escrito especialmente para dar as boas-vindas ao Padre Marçal Beliarte tem início com o Recebimento de Guaraparim no porto da vila, e desenvolve-se pelo caminho que leva até a igreja. O Auto termina em seu adro.
No entanto, as representações no interior das igrejas não foram muito freqüentes no sul do país e praticamente deixaram de ser realizadas após a proibição de Roma, que não via com bons olhos essas encenações.
O fato é que qualquer motivo servia de pretexto para as representações, e isso vinha preencher a lacuna ocasionada pela falta de diversão na vida da Colônia. Assim, as festas de padroeiros (Na Festa de São Lourenço, O Auto de São Sebastião, Na Visitação de Santa Isabel, Na Festa do Natal), o recebimento de relíquias ou imagens milagrosas (Dia da Assunção, Quando no Espírito Santo se Recebeu urna Relíquia das Onze Mil Virgens), a recepção a personagens importantes pertencentes à Companhia de Jesus ou não (Na Vila de Vitória, Diálogo de Guaraparim), e as festas de início de curso ou de encerramento do ano escolar (Égloga Pastoril, Diálogo, História de Assuero) foram motivos para representações teatrais.
Quanto à língua usada nesses Autos, é de espantar a multiplicidade lingüística de alguns autos jesuíticos. Eram peças escritas em português, espanhol e tupi. Algumas bilíngües e outras trilíngües. Um exemplo de texto bilíngüe é o auto Na Vila de Vitória, onde o português e o espanhol se entrelaçavam com grande naturalidade. Na Festa de São Lourenço encontramos o tupi, o português e o castelhano.
Os espetáculos em tupi destinavam-se aos indígenas e, por serem falados na língua brasílica, a comunicação deveria ser direta. As peças em espanhol e as em espanhol e português fazem supor uma platéia de pessoas de maior erudição e condição social mais elevada. Era comum também a utilização da língua espanhola por ser um hábito da Corte. Aqui, se faz fundamental esclarecer que, nesse momento histórico em que o teatro jesuítico estava em plena atividade, Portugal e colônias estavam sob o poder de Felipe II, da Espanha. Isso, sem contar que José de Anchieta, o maior autor dos Autos jesuíticos, era espanhol.
Os autos onde encontramos a alternância das três línguas levam-nos a crer a presença de um público familiarizado com as condições da terra. Assim, teríamos espanhóis e portugueses que já conheciam o tupi, e índios suficientemente civilizados, e capazes de compreender as outras duas línguas.
A língua utilizada nas comédias e tragédias, por serem “cousas mais escolásticas e graves”, era o latim. O uso do latim veio em conseqüência de uma regra que obrigava os estudantes de Humanidades à prática dessa língua.
Dentro das finalidades a que se propunham os autos jesuíticos, seus personagens deveriam ser, principalmente, santos e demônios. Entre os santos representados, encontramos; São Lourenço, São Sebastião, Santa Úrsula, São Maurício, Santa Isabel. Entre os demônios, além do próprio Lúcifer, temos satanás e as cortes infernais, além dos “anhangás”, Guaixará, Aimberê, Saravaia, anhanguçu; Arongatu Tataurana, Urubu e outros. Uma lei geral da Companhia de Jesus, promulgada em 1599, mas que passou a vigorar no Brasil nos princípios do século XVII, proibia a representação de papéis femininos nos teatros dos colégios. Permitia-se entretanto a representação das Santas Virgens. Essa proibição tinha por fim evitar que a mocidade se excitasse com devaneios e que a má-fé desvirtuasse as intenções dos mestres.
Os diferentes papéis do teatro jesuítico só poderiam ser interpretados por homens, atores amadores, moradores do local e convenientemente ensaiados pelos padres. Assim, deveriam participar dos espetáculos, não apenas crianças, mas também índios adultos domesticados. Certo é que também deveriam participar brancos e mamelucos.
De suas origens, traziam os jesuítas o gosto por uma cenografia complicada e deslumbrante, o caráter festivo das representações, tal como acontecia na Idade Média, deveria mobilizar toda a população no intuito, senão de colaborar, pelo menos para servir de espectador; e a construção dramático-literária dos autos, onde a inobservância de convenções era regra geral, foi pretexto para o enriquecimento das encenações. Sabendo utilizar a cenografia, as mais variadas técnicas e conjugando fatores plásticos dos mais diversos e inusitados, ofereceram os jesuítas aos primeiros colonizadores e colonizados belos espetáculos teatrais.
O século XVI conheceu o que de melhor o teatro jesuítico podia oferecer. Com a finalidade específica de catequese, foi nesse século que o teatro jesuítico se evidenciou acompanhando a obra missionária dos padres da Companhia de Jesus. A relativa tranqüilidade política desse século muito contribuiu para a realização desse trabalho, assim como permitiu uma maior participação do auditório.
O século XVII se caracteriza pelo declínio do teatro jesuítico. Fato esse bastante compreensível, vez que a grande obra de catequese já estava praticamente consolidada nos principais centros.Mas, contrariamente ao que aconteceu na Europa Medieval, onde o desaparecimento do teatro religioso acarretou um desenvolvimento do teatro profano, no Brasil essas atividades, nos séculos XVII e XVIII foram escassas.

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